Arquivo mensal: janeiro 2016

Sinfonia de apitos

APITO

Pequena divagação dedicada a Noel Rosa

 

Muito tenho pensado sobre apitos. O meu companheiro e eu somos uma espécie em extinção. Éramos professores universitários, saúde pública, universidade federal de Santa Catarina. No tempo em que Saúde Pública era pública e não “coletiva”, que hoje tanto pode ser publica como privada… Nem sempre universal e muito menos pública. Ah!…as palavras. Pois bem, corriam os tempos da ditadura militar, muita repressão, silêncio, horror, tortura e morte. Mas, também, muita resistência e enfrentamento, muita rebeldia e criatividade. Seria mentira dizer que não acontecia festa e alegria, afinal, apesar dos milicos havia vida inteligente no Brasil. Não corríamos o risco de em se vestindo de verde, pastar a própria farda…aliás, piada muito conhecida e utilizada na época.

E, nesse quadro todo, as formas de manifestação eram variadas. Passeatas, apitaços, panfletagens, greves, ocupação do campus universitário. As greves não eram terceirizadas. Os materiais eram feitos manual e pessoalmente pelos manifestantes que pintavam as faixas, rodavam os panfletos em mimeógrafo a álcool, distribuíam o material de mão em mão, as palavras de ordem no “boca a boca”, os professores mais “prendados” faziam bolos, doces, sanduíches, sucos para vender e arrecadar fundos, os megafones e os carros de som com voz presencial (não se usava, ainda, gravações, só para as músicas), os telefones grampeados e as ligações difíceis. Quando tinha uma ligação interurbana, alguém do grupo gritava, “chamada de longa distância para o comando”… depois melhorou, foi o tempo do Telex e do FAX enfim chegou a revolução técnico-informacional científica. Eficiente, rápida, fácil, mas…muito sem graça. Não quero negar e nem rejeitar a evolução, mas tenho a sensação que estamos sendo pasteurizados.

Esta impressão é que reforça a percepção de ser alguém que não está “formatada” para a contemporaneidade. No entanto, mesmo nesta atual fase de vida, mais restrita e recolhida, as coisas modernas e atualizadas fazem parte do meu cotidiano.

Vejamos: eu tinha dois “notebooks”, um velho e outro novo. Estava fazendo o “back up” do velho para o novo, transpondo os meus arquivos, textos, endereços, discursos, aulas, fotografias, enfim, coisas que eu não queria perder, caso o computador velho parasse de vez. Eis, que em plena tarde, num dia de sol, entrou um ladrão na minha casa e levou os dois computadores que estavam na sala. Não roubou mais nada porque viu que tinha gente em casa. Em poucos minutos fiquei sem nada do que queria preservar. A partir daí começou a loucura e a paranoia da necessidade de segurança na casa. Fazer grades de ferro, portas e janelas pantográficas, instalar alarme, limpar o olho mágico (nunca foi usado, mas enfim…), colocar em uso a tranca da porta, colocar chave mestra com quatro faces, adestrar o cachorro que dormia profundamente na hora do assalto, treinar os moradores para operar o alarme, reconhecer os diferentes apitos. Uma verdadeira parafernália para aquisição de novas habilidades não previstas e nem desejadas.

A partir daí percebi que computadores embora super necessários não são tão vitais assim. Comecei também a observar o cotidiano da vida doméstica considerando que não tinha mais como me entreter com os prazeres dos jogos digitais. Eis que percebo uma infinidade de barulhos tecnológicos semelhantes a uma sinfonia de apitos, um apitaço! Sibilos, uivos, trinados, assobios e outros ruídos similares. Em meio a situações complexas e estressantes como cozinhar, por exemplo, vou vivendo. Em momentos de pico das atividades me deparo com o forno de micro-ondas apitando, o forno elétrico apitando, a campainha silvando alucinada com a chegada do entregador de gás, quando vamos atender a porta dispara o alarme, ao voltar à cozinha o apito resfolegante de uma nova chaleira que tem um bico estreito e solta vapor, avisa que a água ferveu. Penso que é uma adaptação da velha “Maria Fumaça” criada por algum designer neo-criativo que ganhou o mercado doméstico. Enfim quando termina a insana correria para atender todos os apitos, exausta sento para tomar um inocente café com torrada, pois caso aumente o peso haverá sem dúvida o apito da balança na minha mente disciplinada e faminta. Mas, aí começa a assobiar o WhatsApp…vou atrás do barulhinho e ouço um outro apito, como um guincho alucinado, olho o que é e vejo um rato amassado, não me assusto, a minha muleta apenas apertou o brinquedo da gata da minha filha. Ufa!

Neste momento lembro-me do velho samba de Noel que encanta os ouvidos e a sensibilidade até falando dos irritantes apitos:

 

(…) Quando o apito da fábrica de tecidos

Vem ferir os meus ouvidos

Eu me lembro de você.

(…)

Você que atende ao apito

De uma chaminé de barro,

Por que não atende ao grito tão aflito

Da buzina do meu carro?

(…)

Mas você é mesmo

Artigo que não se imita,

Quando a fábrica apita

Faz reclame de você.